Ritmo de ciranda

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
Sua espada coruscante, seu formidável
Poder de penetrar o sangue e nele imprimir
Uma orquídea de fogo e lágrimas.

Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonta que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazia para mim e que seus dedos confirmavam
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
O Outro que eu me supunha, o Outro que o imaginava.

Assim o amor
Dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
Com o olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
E a pura essência em que nos transmutamos dispensa
Alegorias, circunstâncias, referências temporais,
Imaginações oníricas,
As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
Todas as imposturas da razão e da experiência,
Para existir em si e por si,
À revelia de corpos amantes.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
E me confessasse jubilosamente vencida,
Até respirar o júbilo maior da integração.
Agora,
Nem olhar tenho de ver nem ouvidos de captar
A melodia, a paisagem, a transparência da vida,
Perdida que estou na concha ultramarina de amar.

Carlos Drummond de Andrade – adapataçao de "Reconhecimento do amor"

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